6 questões fundamentais para entender o debate sobre a descriminalização de drogas no Brasil
No Brasil as políticas sobre drogas têm assumido majoritariamente caráter repressivo, por meio da criminalização do uso de determinadas substâncias e pela chamada política de “guerra às drogas”. Hoje, a principal legislação que dispõe sobre a criminalização da produção e do consumo de entorpecentes no país é a Lei de Drogas publicada em 2006, que contribuiu para o aumento da população carcerária e para o genocídio negro.
Essa guerra, além de ter deixado incontáveis vítimas, também custa caro. Pesquisa do CESeC mostra que, em um ano, as instituições de segurança pública e justiça criminal dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo gastaram mais de R$ 5,2 bilhões com a política de proibição das drogas.
Apesar de existir amplo respaldo científico e diversos países do mundo caminharem no sentido da descriminalização das drogas, principalmente da maconha, ainda há resistência ao debate no âmbito político, o que mantém o Brasil em um atraso baseado em desconhecimento e moralismo.
A seguir, apresentamos 6 questões fundamentais para entender o debate sobre a descriminalização de drogas no Brasil.
1. O que significa descriminalizar drogas?
Descriminalizar drogas significa alterar a legislação para que deixe de ser crime o porte e consumo de drogas para uso pessoal. Com a descriminalização, o usuário de drogas deixa de ser considerado criminoso e o objetivo é que os riscos relacionados ao uso problemático de drogas sejam encarados como uma questão de saúde pública.
2. Qual é a diferença entre descriminalização e legalização de drogas?
A descriminalização é diferente da legalização. Na legalização, todas as possíveis sanções ao uso e ao comércio de drogas são eliminadas, passando estas a serem regulamentadas pelo Estado. Já na descriminalização, apenas o consumo pessoal deixa de ser ilícito do ponto de vista penal, podendo a pessoa ainda receber algum tipo de sanção administrativa que não seja a pena de prisão.
Os modelos de políticas de drogas mais recorrentes incluem: despenalização, descriminalização e legalização, que pode acontecer a partir de regulação ou liberação. Na prática, as políticas adotadas pelos países geralmente incluem modelos mistos, variando principalmente a partir da conduta, tipo de substância, entre outros. São diferenciações comuns entre as políticas: usuária/o problemática/o e usuária/o não problemática/o, usuária/o e traficante, drogas consideradas leves ou pesadas.
3. Fazer uso de substâncias psicoativas é crime no Brasil?
Em 2006, o Brasil despenalizou o porte para consumo pessoal de drogas. A Lei de Drogas, Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, estabelece, em seu artigo 28, que o usuário de drogas comete uma infração ao fazer uso de substâncias psicoativas, mas não pode ser preso desde que o uso seja pessoal, em quantidade considerada como de consumo e não haja indícios de tráfico. O usuário pode, portanto, receber sanções como o comparecimento a cursos ou prestação de serviços comunitários.
Contudo, apesar de despenalizar o uso, a legislação não define critérios objetivos para garantir a diferenciação entre usuários e traficantes. Na prática, quem faz essa distinção é o policial e o resultado são condenações que utilizam estereótipos sociais e raciais como principal critério. Assim, a pessoa flagrada com droga passa a ter que provar que não é traficante, contrariando o princípio da presunção de inocência.
O que a Rede Justiça Criminal percebe é que ao Judiciário não costuma interessar a conduta, mas sim o perfil da pessoa que é encontrada com as drogas. Os dados não mentem: no Rio de Janeiro, por exemplo, a maioria das pessoas condenadas por tráfico de drogas são jovens negros, sem antecedentes criminais, réus primários e flagrados com pequenas quantidades de droga. A política proibicionista funciona, portanto, como ferramenta de encarceramento da população negra.
4. Qual é a experiência de outros países que descriminalizaram as drogas?
Países como Portugal, Holanda e Uruguai já adotaram políticas de descriminalização ou legalização de drogas e têm apresentado resultados positivos em termos de redução do consumo e da violência relacionada ao tráfico. Os Estados Unidos, berço do proibicionismo no mundo, revisou sua legislação em 2009, soltando cerca de cem mil pessoas encarceradas consideradas usuárias e fornecendo-lhes tratamento e reabilitação.
Nos Estados Unidos, por exercer o federalismo, cada estado possui legislação própria, mas muitos legalizaram o consumo de cannabis para fins terapêuticos, sendo o uso recreativo desconsiderado delito. Já o estado de Illinois implementou uma lei para reparação social. Parte das verbas provenientes da venda da maconha foram revertidas para políticas de moradia. Foram consideradas famílias negras que sofreram com a política de habitação racista entre 1919 e 1969. Cada família recebe subsídio para a compra ou a reforma de um imóvel.
5. Quais são as propostas de descriminalização em discussão no Brasil?
Há algumas propostas em discussão no Congresso Nacional e em outros espaços políticos que propõem, principalmente, a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal.
Além disso, há também discussões sobre a regulamentação do uso medicinal da maconha. O mais recente, o PL 399/2015, entrou em tramitação na Câmara em 2021. O projeto pretendia viabilizar a comercialização de medicamentos com extrato ou parte de Cannabis na formulação. O PL está parado, mas se aprovado, autorizará o cultivo controlado no país para fins medicinais, científicos e industriais.
O texto, se comparado com outras leis ao redor do mundo, é considerado conservador pois não trata, por exemplo, da autorização de que pacientes possam plantar em casa. Ainda assim, o debate vem enfrentando dificuldade para avançar no Congresso: foi aprovado em Comissão Especial da Câmara e, como a matéria tem caráter conclusivo, ela deveria ter seguido para a votação no Senado. Porém, deputados de oposição apresentaram um recurso para que ela seja votada em plenário.
Outro tema que mobiliza o Congresso de tempos em tempos é a figura do tráfico privilegiado, que é quando pessoas que não têm antecedentes criminais nem participam de organização criminosa, não podem ter seu crime tipificado como hediondo. Essa diferenciação é feita pela lei de 2006 e foi reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal. Contudo, a decisão não é respeitada pelo Judiciário e muita gente está presa cumprindo o regime como se fosse crime hediondo, com uma pena consideravelmente mais severa.
6. Como repensar a política de drogas?
Uma nova política de drogas precisa retirar o foco da substância e lançá-lo sobre o indivíduo. É preciso adotar políticas públicas que promovam o desencarceramento, em detrimento de qualquer medida que implique no endurecimento do Estado penal, descriminalizando o uso, a posse e comércio de pequenas quantidades. Também é preciso que o Estado forneça gratuitamente remédios à base de cannabis – como o canabidiol, substância que possui qualidades antiepilética, ansiolítica, antipsicótica, anti-inflamatória e neuroprotetora, e estimule pesquisas científicas sobre outros canabinóides, que podem auxiliar milhares de pessoas.
A lógica repressiva deve ser substituída pelo olhar a partir da saúde pública, garantindo a perspectiva de redução de danos no tratamento e assistência a pessoas que fazem uso problemático de substâncias. É preciso pensar em modelos alternativos de regulamentação, que mexam na estrutura e levem em conta medidas de reparação às vítimas do Estado.