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Segurança Pública

Clarice Lispector, punição e justiça

Publicado em: 23/01/2025
Escrito por: Rede Justiça Criminal

Clarice Lispector, conhecida pela escrita profunda e introspectiva de romances, também envolveu o público com seu extenso acervo de crônicas, onde tratou sobre temas como justiça, crime, punição e direitos.

A autora, que viveu durante sua juventude nas cidades de Maceió, Recife e Rio de Janeiro, ingressou em 1939, com 19 anos, na Escola de Direito da Universidade do Brasil porque desejava reformar as prisões brasileiras. Nesta época, Clarice começa a se dedicar também à literatura. Embora sua obra explore diversos temas, é possível identificar uma reflexão sutil sobre o sistema prisional, os conceitos de punição e justiça e suas implicações na sociedade.  

“Como que eu seria charlatã? Eu fui, e com toda a sinceridade, pensando que acertava. Sou, por exemplo, formada em Direito, e com isso enganei a mim e aos outros. Não, mais a mim que a todos. No entanto, como eu era sincera: fui estudar Direito porque desejava reformar as penitenciárias no Brasil.” Lispector em crônica ‘Charlatões’, no periódico Jornal do Brasil de 8 de setembro de 1973.

Apesar de sequer ter ido buscar seu diploma, Clarice Lispector levantou questionamentos jurídicos nos anos em que cursou Direito. Em ensaio intitulado ‘Observações sobre o direito de punir’, publicado em 1941 na revista A Época, a autora parte da premissa de que a punição é a vingança realizada pelo poder do Estado. Para Lispector, ainda que legitimada por meio da lei, a punição não faz com que a sociedade retorne à normalidade. Ao contrário, abafa o crime enquanto um mal social e sua aplicação está diretamente ligada a sentimentos individuais como o sadismo.

“O que é certo, na questão da punição, é que determinadas instituições, em dada época, sentindo-se ameaçadas em sua solidez com a perpetração de determinados atos, taxa-os como puníveis, muitas vezes nesses atos não há nem a sombra de um delito natural: essas instituições querem apenas se defender.”

Lispector em ensaio intitulado ‘Observações sobre o direito de punir’, disponível no livro ‘Clarice Lispector, Outros Escritos’ da editora Rocco.  

Clarice e a segurança pública

Anos após cursar a universidade de Direito, em 1962, Clarice escreveu o que viria a se tornar o “filho predileto entre seus trabalhos”, de acordo com resposta em entrevista concedida a Júlio Lerner, na TV Cultura: a crônica Mineirinho.

No texto, ela descreve a execução sumária de José Miranda Rosa, conhecido como Mineirinho, no Rio de Janeiro. Mineirinho era procurado e foi executado pela polícia com treze tiros.

“Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela (…) Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.”

Embora Lispector não discuta explicitamente a justiça como um conceito jurídico, suas obras muitas vezes exploram a noção de justiça em um sentido mais amplo destacando, principalmente, as assimetrias sociais.  

“Não, não tenho pena dos que morrem de fome. A ira é o que me toma. E acho certo roubar para comer.”
Clarice Lispector, no livro “A descoberta do mundo”.