A pandemia nos ensinou: presença e videoconferência são questões muito distintas
Defender a audiência de custódia presencial é uma tarefa para todos que são contra a tortura
Fonte: Janine Salles
Artigo Revista Época
A pandemia de Covid-19 tem nos obrigado a realizar mudanças profundas, sejam elas de comportamento, na forma como trabalhamos ou em nossos relacionamentos. Nos vimos diante da necessidade de nos adaptar e lançar mão de soluções criativas como resposta aos limites trazidos por uma crise que já vitimou milhares de pessoas pelo mundo e que segue impondo regras de distanciamento social e novas formas de convívio. Uma dessas soluções tem sido o uso cada vez mais intenso da tecnologia.
No entanto, se por um lado o uso de recursos tecnológicos pode ser visto como uma saída, é inegável que seu emprego em toda e qualquer circunstância pode ter consequências nefastas e difíceis de serem revertidas no futuro. Esse é o caso da realização das audiências de custódia por meio de videoconferência que, certamente, é ineficaz para cumprir com as funções primordiais de tal instrumento.
A audiência de custódia é o direito que toda pessoa presa em flagrante tem de ser levada à presença da autoridade judicial em um prazo máximo de 24h. No último dia 19 de abril e, em uma decisão acertada, o Congresso Nacional vetou a possibilidade de se realizar as audiências de custódia virtualmente, reconhecendo que somente a sua ocorrência na forma presencial é capaz de garantir, em toda a sua integridade, a manutenção desse direito.
Desde quando passou a vigorar em 2015 no Brasil, as audiências de custódia representam a garantia de que uma prisão ilegal seja imediatamente relaxada e de que ninguém será levado à prisão ou nela mantido se a lei admitir a liberdade. Esse controle torna-se ainda mais importante em um país que adota como política o encarceramento massivo, seletivo, abusivo e ineficaz para a prevenção da violência, resultando em um aumento vertiginoso de sua população carcerária e em um sistema de justiça criminal que retroalimenta as desigualdades profundas que castigam a nossa sociedade.
Somente entre os anos 2000 e 2016, a taxa de aprisionamento no Brasil teve um aumento de 157%. De acordo com dados oficiais mais recentes, existem mais de 700 mil pessoas presas em estabelecimentos carcerários em todo o país, a despeito de um déficit de mais de 300 mil vagas. Desse total, a maioria é composta por jovens negros, pobres e de baixa escolaridade.
Diante deste cenário, o uso indiscriminado das prisões provisórias torna-se ainda mais preocupante. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o tempo médio que uma pessoa presa que ainda aguarda pelo julgamento varia de 172 a 974 dias. Em um país cuja população prisional é a terceira maior do mundo, o número de pessoas presas sem condenação atinge, atualmente, um patamar de 222.558 mil. Quando julgadas, boa parte delas (37%) sequer são condenadas com pena privativa de liberdade ao final do processamento.
A realização de audiências de custódia por videoconferência, mesmo sob o argumento de que seria uma medida excepcional durante a pandemia, implica em um aumento de gastos do dinheiro público que seria forçosamente vertido na instalação de equipamentos e infraestrutura, agravando de forma ainda mais dramática a crise econômica e sanitária pela qual estamos passamos. Argumentos contrários atestando que a videoconferência reduziria custos são falaciosos e desconectados da realidade de um país de dimensões continentais e com acesso precário e desigual à internet e outros recursos.
Ao longo da pandemia, uma série de estados brasileiros voltou a realizar audiências de custódia de forma presencial e em estrito respeito aos protocolos de saúde, demonstrando, de forma exitosa, que é possível garantir tal direito e prevenir o contágio de forma conjugada. Um exemplo é o estado do Rio de Janeiro, que retomou as audiências presenciais desde agosto de 2020 e sem nenhum registro de irregularidades. Tal êxito não se pode afirmar quanto às audiências de custódia virtuais. Diversas organizações da sociedade civil organizada e movimentos sociais têm denunciado situações absurdas, como a realização de audiências em delegacias, muitas vezes com a presença do policial que torturou a vítima, o que é incontestavelmente ilegal.
Não é de hoje que as audiências de custódia sofrem ataques e tentativas reiteradas de esvaziamento, inclusive por parte de órgãos e entidades que deveriam primar pela sua proteção e aperfeiçoamento e em consonância com normas internacionais como a Convenção Interamericana de Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU. Articulações formadas por centenas de organizações da sociedade civil, defensores públicos, juízes e associações de familiares de vítimas do Estado têm batido na tecla que o corpo da eventual vítima não pode ser visualizado a contento através de uma tela e o uso do recurso tecnológico inibe possíveis denúncias, prejudicando, assim, o exercício da ampla defesa. Esse esvaziamento se torna ainda mais grave quando associamos essa medida aos sucessivos ataques por parte do governo federal ao Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura.
Nenhuma situação de excepcionalidade pode servir como salvo conduto à flexibilizações perigosas e inconsequentes. Pior ainda quando se existe o risco de que medidas antes temporárias podem passar a ser a regra e não a exceção. Minar as audiências de custódia presenciais seria o mesmo que chancelar um grave retrocesso civilizatório baseado na admissão da tortura e da ilegalidade e em detrimento da defesa intransigível de direitos e garantias fundamentais que dizem respeito a todos nós.
*Janine Salles de Carvalho é secretária-executiva da Rede Justiça Criminal, coalizão de nove organizações que atua contra o encarceramento em massa e por um sistema de justiça que não viole direitos humanos.